Quando eu chegava a este mundo em 1956, João Cabral de Melo
Neto acabara de lançar sua famosa obra “Morte e Vida Severina” que conta a
trajetória e o sofrimento do itinerante Severino em busca de uma vida melhor na
capital pernambucana. De sua jornada, muitas mortes e muita miséria enquanto a
busca do seu grande sonho seguia sendo um eterno pesadelo.
Considerando que já lá se vão 64 anos desde que a obra foi
publicada e que a busca dos “Severinos” por vida melhor nunca acaba, me pego
aqui a pensar neste Brasil imenso, habitado por milhares de “quebra-galhos”,
alusão feita àquele Severino interpretado pelo saudoso Paulo Silvino num famoso
quadro de humor. O Severino de todas as partes continua sendo aquele sofredor
aguerrido, capaz de trabalhar com qualquer coisa para dali tirar seu parco
sustento. Mas o Severino de todas as partes, a maioria que só sabe assinar o
nome e escrever algumas palavras, carrega consigo hoje um CPF e um RG que podem
lhe garantir um desses benefícios governamentais que neste atual governo não
passam de uma esmola para se criar vadios. Ora; o Severino desse tempo
pandêmico carrega, além da eterna esperança de ser digno à existência o seu
título de eleitor, passaporte para a tão esperada vida melhor, numa casinha com
certo conforto, com energia elétrica e água encanada, um televisor para o
entretenimento e é claro; comida no armário.
Severinos e Severinas atravessaram distâncias por eles
inimagináveis ao longo dessas décadas enquanto eu por aqui crescia tendo uma
infância feliz, bem alimentado, com direito à instrução e total acesso ao
conhecimento em todas as suas áreas. Cresci um tanto alheio à triste realidade
de nossa gente “Severina” tão sofrida, tão explorada, tão pisoteada pelas
classes abastadas de uma sociedade hipócrita onde o “outro” em seus andrajos
deploráveis passa de mendigo a um perigo iminente que urra feito fera com ecos
que retumbam do interior das favelas.
Quando atingi uma idade plausível para a compreensão da
nossa realidade pífia levei um susto ao descobrir um país imenso, dotado de uma
riqueza inesgotável e onde, a exemplo da visão do Manuel Bandeira, passava a
observar “um homem na lata de lixo”, aquele “Bicho” esfomeado nos assombrando a
alma como um fantasma vivo.
Então tivemos a fase do “É isso ai, Bicho!”, e nem
lembrávamos daquele “Bicho humano” esmiuçando o lixo para comer, para ter a
chance de rastejar um pouco mais. E aquilo, para aquele “Bicho” era tudo o que
restava. Os restos de uma sociedade humana tão desumana.
A Jovem Guarda passou e deu lugar a nossa Velha Guarda
repleta de memórias maravilhosas de um tempo em que se falava muito, mas frente
a frente. De um tempo em que um abraço era fraternal e verdadeiro e onde o romantismo
era uma eterna poesia. Mas o poetinha Vinicius havia dado o aviso: “Que seja
eterno enquanto dure”. E não valia apenas para os relacionamentos amorosos
homem-mulher. Valia para o amor sobre todos e sobre todas as coisas...
Então um belo dia, a exemplo do Big Bang, houve uma explosão
e de repente esta terra começou a nos dar uma esperança verdadeira. A quase
certeza de que os sofredores Severinos dessa terra imensa e desigual iriam
entrar em extinção. Seria a primeira e única extinção de espécie que faria meu
coração saltitar de alegria.
De repente saímos do mapa da fome, reduzimos a mortalidade
infantil, melhoramos nossa posição em variados índices sociais e tudo dava a
impressão que o respeito conquistado lá fora definitivamente nos impulsionaria
de sexta economia para, quem sabe? – terceira ou segunda. Era uma realidade que
finalmente pisoteava o que sempre fora, ao longo de cinco séculos, uma utopia e
nada mais.
Mas outra explosão estava prestes a acontecer e de repente
nossas esperanças sucumbiram vitimas da hipocrisia, do sarcasmo e da total
falta de dignidade por parte de facções diretivas sem escrúpulos e capazes de
tudo para amealhar o poder. E como cantava o Moraes Moreira: “Lá vai o Brasil
descendo a ladeira”.
Só que enquanto descemos a ladeira quem passa por nós na
tentativa de subir? – Os Severinos então esquecidos. Como uma legião de zumbis
desses filmes de terror, eles saíram do chão aflitos, esfomeados outra vez,
maltrapilhos, sem destino, sem esperança de sobreviver nesta terra rica que a
eles oferece apenas e tão somente a dor, a fome, o lixo e a salinidade de suas
lágrimas que escorrem pela face apenas como tentativa de uma nascente do rio da
esperança que jamais atinge a grandeza do oceano.
Então me bate ao portão o homem esquálido, roupas
esfarrapadas, um ameaço de chinelo no pé, barba comprida, olhos profundos,
silhueta de um magro verdadeiro.
-Moço! Pode me arrumar um trocado? Estou sem comer a dois
dias...
Prontamente lhe estendo uma cédula de 20 reais. Os olhos
brilharam tal qual o de um mineiro que encontra o diamante mais valioso.
- Como é seu nome? Pergunto rapidinho.
- Severino!
E veio de onde Severino?
-Ah! Seu moço venho de tão longe que nem sei mais como
voltar e se tivesse que voltar, não iria de jeito algum. Sabe? –prosseguiu ele
– tenho muitas histórias e nenhum livro. Mas fome já é costume, cadeia já
encarei por vadiagem, trabalho desde a roça até a construção de prédio. Mas
sempre assim, pedindo aqui e ali e perambulando igual cachorro abandonado.
-Espere um pouco Severino.
Então voltei com uma calça, uma camiseta, um par de meias e
um calçado, tudo meio calculado a olho. Felicidade foi ali. Felicidade de um
sorriso franco como há tempos não via.
- Seu moço! O senhor é um anjo!
Que nada Severino, nem asas eu tenho.
-Mas o senhor tem a dádiva de me enxergar como gente. E isto
já me basta.
E lá se foi pela rua aquele Severino surpreendente que de
tão longe veio e que para tão longe irá, presumo eu.
Então uma voz lá na alma me indagou:
-Já pensou se fosse o próprio Cristo?
Pensei sim. E se era o próprio, creio que fiquei com suas
bênçãos. De resto, que a esperança não nos abandone e que o tempo possa
esculpir em nossa pura gente um coração ainda mais forte para que juntos,
unidos por uma causa justa, possamos cantar: “Lá vai o Brasil subindo a
ladeira.”
-Pedro Brasil Júnior - 14/07/2020 -