quarta-feira, 15 de julho de 2020

SEVERINO CONTINUA MAIS VIVO DO QUE PODEMOS IMAGINAR

Quando eu chegava a este mundo em 1956, João Cabral de Melo Neto acabara de lançar sua famosa obra “Morte e Vida Severina” que conta a trajetória e o sofrimento do itinerante Severino em busca de uma vida melhor na capital pernambucana. De sua jornada, muitas mortes e muita miséria enquanto a busca do seu grande sonho seguia sendo um eterno pesadelo.

Considerando que já lá se vão 64 anos desde que a obra foi publicada e que a busca dos “Severinos” por vida melhor nunca acaba, me pego aqui a pensar neste Brasil imenso, habitado por milhares de “quebra-galhos”, alusão feita àquele Severino interpretado pelo saudoso Paulo Silvino num famoso quadro de humor. O Severino de todas as partes continua sendo aquele sofredor aguerrido, capaz de trabalhar com qualquer coisa para dali tirar seu parco sustento. Mas o Severino de todas as partes, a maioria que só sabe assinar o nome e escrever algumas palavras, carrega consigo hoje um CPF e um RG que podem lhe garantir um desses benefícios governamentais que neste atual governo não passam de uma esmola para se criar vadios. Ora; o Severino desse tempo pandêmico carrega, além da eterna esperança de ser digno à existência o seu título de eleitor, passaporte para a tão esperada vida melhor, numa casinha com certo conforto, com energia elétrica e água encanada, um televisor para o entretenimento e é claro; comida no armário.

Severinos e Severinas atravessaram distâncias por eles inimagináveis ao longo dessas décadas enquanto eu por aqui crescia tendo uma infância feliz, bem alimentado, com direito à instrução e total acesso ao conhecimento em todas as suas áreas. Cresci um tanto alheio à triste realidade de nossa gente “Severina” tão sofrida, tão explorada, tão pisoteada pelas classes abastadas de uma sociedade hipócrita onde o “outro” em seus andrajos deploráveis passa de mendigo a um perigo iminente que urra feito fera com ecos que retumbam do interior das favelas.


Quando atingi uma idade plausível para a compreensão da nossa realidade pífia levei um susto ao descobrir um país imenso, dotado de uma riqueza inesgotável e onde, a exemplo da visão do Manuel Bandeira, passava a observar “um homem na lata de lixo”, aquele “Bicho” esfomeado nos assombrando a alma como um fantasma vivo.

Então tivemos a fase do “É isso ai, Bicho!”, e nem lembrávamos daquele “Bicho humano” esmiuçando o lixo para comer, para ter a chance de rastejar um pouco mais. E aquilo, para aquele “Bicho” era tudo o que restava. Os restos de uma sociedade humana tão desumana.

A Jovem Guarda passou e deu lugar a nossa Velha Guarda repleta de memórias maravilhosas de um tempo em que se falava muito, mas frente a frente. De um tempo em que um abraço era fraternal e verdadeiro e onde o romantismo era uma eterna poesia. Mas o poetinha Vinicius havia dado o aviso: “Que seja eterno enquanto dure”. E não valia apenas para os relacionamentos amorosos homem-mulher. Valia para o amor sobre todos e sobre todas as coisas...

Então um belo dia, a exemplo do Big Bang, houve uma explosão e de repente esta terra começou a nos dar uma esperança verdadeira. A quase certeza de que os sofredores Severinos dessa terra imensa e desigual iriam entrar em extinção. Seria a primeira e única extinção de espécie que faria meu coração saltitar de alegria.

De repente saímos do mapa da fome, reduzimos a mortalidade infantil, melhoramos nossa posição em variados índices sociais e tudo dava a impressão que o respeito conquistado lá fora definitivamente nos impulsionaria de sexta economia para, quem sabe? – terceira ou segunda. Era uma realidade que finalmente pisoteava o que sempre fora, ao longo de cinco séculos, uma utopia e nada mais.

Mas outra explosão estava prestes a acontecer e de repente nossas esperanças sucumbiram vitimas da hipocrisia, do sarcasmo e da total falta de dignidade por parte de facções diretivas sem escrúpulos e capazes de tudo para amealhar o poder. E como cantava o Moraes Moreira: “Lá vai o Brasil descendo a ladeira”.

Só que enquanto descemos a ladeira quem passa por nós na tentativa de subir? – Os Severinos então esquecidos. Como uma legião de zumbis desses filmes de terror, eles saíram do chão aflitos, esfomeados outra vez, maltrapilhos, sem destino, sem esperança de sobreviver nesta terra rica que a eles oferece apenas e tão somente a dor, a fome, o lixo e a salinidade de suas lágrimas que escorrem pela face apenas como tentativa de uma nascente do rio da esperança que jamais atinge a grandeza do oceano.

Então me bate ao portão o homem esquálido, roupas esfarrapadas, um ameaço de chinelo no pé, barba comprida, olhos profundos, silhueta de um magro verdadeiro.

-Moço! Pode me arrumar um trocado? Estou sem comer a dois dias...

Prontamente lhe estendo uma cédula de 20 reais. Os olhos brilharam tal qual o de um mineiro que encontra o diamante mais valioso.

- Como é seu nome? Pergunto rapidinho.

- Severino!

E veio de onde Severino?

-Ah! Seu moço venho de tão longe que nem sei mais como voltar e se tivesse que voltar, não iria de jeito algum. Sabe? –prosseguiu ele – tenho muitas histórias e nenhum livro. Mas fome já é costume, cadeia já encarei por vadiagem, trabalho desde a roça até a construção de prédio. Mas sempre assim, pedindo aqui e ali e perambulando igual cachorro abandonado.

-Espere um pouco Severino.

Então voltei com uma calça, uma camiseta, um par de meias e um calçado, tudo meio calculado a olho. Felicidade foi ali. Felicidade de um sorriso franco como há tempos não via.

- Seu moço! O senhor é um anjo!

Que nada Severino, nem asas eu tenho.

-Mas o senhor tem a dádiva de me enxergar como gente. E isto já me basta.

E lá se foi pela rua aquele Severino surpreendente que de tão longe veio e que para tão longe irá, presumo eu.

Então uma voz lá na alma me indagou:

-Já pensou se fosse o próprio Cristo?

Pensei sim. E se era o próprio, creio que fiquei com suas bênçãos. De resto, que a esperança não nos abandone e que o tempo possa esculpir em nossa pura gente um coração ainda mais forte para que juntos, unidos por uma causa justa, possamos cantar: “Lá vai o Brasil subindo a ladeira.”


-Pedro Brasil Júnior - 14/07/2020 -


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