quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

AINDA BEM QUE SOMOS FLEX

Primeiro soa o relógio digital do celular. Depois entra em ação o relógio biológico. Meu corpo se ressente e minha mente faz a pergunta que virou costume: Quais dores teremos para hoje?

Às vezes é o ciático, noutras ocasiões a coluna e tem aqueles dias em que dói a alma.  Vou ter que sair da cama mesmo?

E uma doce e sutil voz diz: “Vai lá e encara a vida de frente!”.

Então começa mais um dia com aquelas trinta e poucas mensagens de “bom dia” no celular. E que o dia seja bom mesmo!

O mundo lá fora vive de pedir um pouco de tudo. Emprego, vacina, água potável, comida, remédios... E o que incomodam a Deus com isto é coisa de doido. Se por onde vive a Grande Alma existir um Serviço de Atendimento ao Cliente pode ter certeza de que todas as linhas vivem ocupadas. Sorte a sua se de repente for atendido em vias assim diretas. O melhor conselho é procurar os “ouvidores” terrenos que tem sempre uma carta na manga e um coelho na cartola para operar um suposto milagre a módicos dez por cento da sua renda. Concorrem furtivamente com o Leão da Receita que suga com toda pompa parte do suor do seu trabalho e sem cerimônia alguma. 

Bem; o dia é de pedir – mais um, aliás – e ouço palmas no portão. Primeiro um rapaz magricela pedindo cinco ou dez centavos. O que você vai fazer com tanto dinheiro assim? Pergunto com um sorriso nos lábios. Ele me olha meio assustado, meio encabulado e fica mudo. Então peço que aguarde e logo lhe trago uma cédula de dois reais. Sua expressão muda e surge um sorriso leve. Ele abençoa a atitude e desaparece lá adiante, bem na entrada de um boteco. Lá foi enganar a fome com a essência da tal “marvada”. E olha; bendita seja a cana que nos dá o açúcar, o etanol e para muitos a ilusão de estômago forrado.

Pouco depois outras palmas. Agora um vendedor de alfajor que pertence a uma instituição com nome estranho. No peito, o “cara-crachá” feito a “pau-a-pique”.  Cada um se vira como pode...

Hora de abrir aquela gaveta farmacêutica e decidir entre um Torsilax ou um Dorflex. É meu amigo, depois dos cinquenta a gente vira “Flex” e pode ser movido a chá, café ou Coca-Cola afinal, “isso é que é!” e lá vou para os afazeres e compromissos do dia depois de uma noite de sono inquieto em função das certezas e das incertezas que nos cercam. O que sei é que lá longe existem mentes brilhantes dedicadas à vida e mentes maquiavélicas dedicadas à morte. É uma guerra sem fim, tanto aqui quanto em estágios da espiritualidade de onde, todos os dias nos enviam novos guerreiros para que possam por aqui evoluir e quem sabe; ajudar a melhorar este mundo infernal.

Já com minha quase inseparável máscara, porque às vezes tenho que voltar porque a esqueci, vou às ruas para resolver pequenas causas, caminhando em terreno minado por este vírus que segue matando muitos e que por uma legião segue sendo ignorado como perigo real. Volto rapidinho e me aconchego nesta cadeira diante do computador para esmiuçar as notícias e topar com as coisas mais estapafúrdias que este século tão tecnológico foi capaz de produzir na maioria das pessoas. Vou à janela e recebo uma golfada de vento. Um vento que me sequestra para a beira do mar e deixo a imaginação seguir aguçando todos os sentidos. O aroma marítimo, o pisar na areia, aquele molhar os pés na água e a visão das gaivotas em rasantes em meio às ondas para pescar. Tateio o rebuliço das ondas que quebram catando algumas conchinhas e me vem à boca um delicioso gosto de viver. Então volto à cadeira, às divagações e recordo que no final da noite passada estive nos confins de Moçambique, a terra do escritor Mia Couto, através de um dos seus livros que acabei de ler. É outra terra que integra o planeta, mas lá tem um bom tanto do que por aqui tanto urge. A esperança, o fim da fome, a água potável e a vontade de dançar na chuva para exaltar uma alegria tão pura e necessária. Então não devemos falar de bandeiras, mas falar de gente, ainda que em culturas diferentes, mas são pessoas que desejam o mínimo que esta grande casa oferece: simplesmente viver!

Diz o Mia Couto com uma visão muito profunda: “ Só existem duas Nações no mundo, a dos Vivos e a dos Mortos”! – Vivamos, ora, pois, ainda que com os Dorflex de cada dia.

- Pedro Brasil Jr – 27/01/2021


 

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